terça-feira, 29 de abril de 2008

A tribo na voz



Nascida em Novembro de 1956 na Karasjok Norueguesa, na pequena aldeia de Gamehhisnjarga, Mari Boine cresceu no seio de uma casa conservadora, oprimida pela segregação cristã contra as tradições preservadas a custo pela etnia nativa Sámi, e assim dividida pelo apego a uma família feita sobre pilares extremosamente pios - o pai era cristão Laestadiano fervoroso - e a alegria inata de cantar, dançar e servir de fio condutor às vibrações que animam os habitantes da Finnmark.

Em 1989, pela Real World de Peter Gabriel, lança Gula Gula, um primeiro trabalho com expressão internacional, caracterizado pela fusão entre o jazz e a joik, ritmo primordial da região e cultura Sámi. À data da edição deste álbum, Boine participa activamente em manifestações pró- Sámi, tendo chegado a desafiar a então primeiro-ministro, Gro Harlem Brundtland, a apresentar um pedido de desculpas em nome do Estado Norueguês pelas décadas de repressão e quase eugenia praticadas sobre as minorias que habitam o extremo Norte do país. As suas gravações de 1985, compiladas sob o título Juskatvuoa Manna, nunca chegam a conhecer edição fora da Noruega.

Dali até hoje, com uma dezena de álbuns propelidos ao estatuto de referência inevitável na world music, Boine confere coerência à sua obra fazendo-se suplantar na execução pela companhia de profissionais (Gjermund Silset, Helge Norbakken, Hege Rimestad) que já não podem ser considerados alvo da crítica, e não se atendo à condição cliché de cantora contestatária que jamais exorbita das suas raízes. De facto, Eight Seasons e Idjagiedas são marcos na carreira de Mari Boine em que podem ser ouvidas (em boa verdade, atropelam o ouvinte) incursões por linhas onde a estepe e a tundra se fundem com viagens pela estratosfera de olhos postos em sessões de xamanismo que fazem pensar em Lisa Gerrard à fogueira, possuída por espíritos do ar, com Bill Frisell à guitarra. Aterrador de tão gutural. Geotérmico.

Colaborando com Jan Garbarek, Sergei Starostin, e Anders Porsanen em projectos independentes, eclectiza ainda mais o espectro das influências presentes em Idjagiedas (que pôde apresentar a 16 de Fevereiro de 2008 na Culturgest) e faz-nos crer que haverá ainda muito a construir no denso ar entre a voz e os tambores. Citando-a,

"Não posso representar um povo inteiro. Mas posso contar a minha história como Sami e dessa forma contar parte da história do povo Sami. Nas minhas canções posso descrever a dor da opressão, a luta para ganhar o respeito próprio, mas também a alegria de crescer numa cultura que tem uma ligação tão forte com a natureza”.
A música pode tocar-nos de uma forma insuspeita. Pode oferecer significados, mas pode também criar momentos que não conseguimos definir. A música pode confundir-nos, mas também pode fazer-‑nos sentir felizes, exaltar-nos espiritualmente ou enriquecer-nos."

É assim que há sempre alguém que nos remete para a nossa condição primeva de tribo à deriva num planeta ainda e sempre inóspito, condição sobre a qual por vezes nos arrogamos direitos de supremacia nada mais que ilusórios.

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