segunda-feira, 28 de abril de 2008

No Coração da Noite

O que é a música electrónica? Apenas sons extraídos de máquinas? Batidas mecânicas sem alma, nem calor? Os Kraftwerk, portanto… Pois, nem tanto. Aliás, nada mesmo. De certa forma, o grande desafio posto aos cultores da electrónica foi justamente esse, dar alma às máquinas. O Disco foi instrumental nesse propósito, porque conseguiu que, através dos sintetizadores e do seu ritmo, nascesse esse calor, esse suplemento de alma que foi criador de sensualidade, suor, movimento, luxúria, emoções todas elas muito humanas. Pioneiros como Patrick Cowley, Giorgio Moroder, Paul Parker e Arthur Russell tiveram como trunfo a invenção dessa possibilidade, digamos, orgânica, da música electrónica. Desde esse período fundador, muitos outros trilharam esse caminho, com maior ou menor sucesso, e fizeram da electrónica a moeda corrente da música contemporânea. Para o bem e para o mal. Serve todo este intróito para reforçar uma ideia já aqui expressa em outras ocasiões: a importância do Disco como linguagem fundadora e universal da música electrónica, e como fonte de onde muitos artistas, bem no centro da modernidade, vão beber a inspiração para criarem obras de excepção, absolutamente contemporâneas. Já aqui se falou dos Glass Candy, mas há outros nesta onda: Lindström & Prins Thomas, Chromatics, Hercules And Love Affair, Junior Boys, Sally Shapiro, Unai, Gui Boratto, The Presets… E, naturalmente, a razão para este arrazoado, o americano nascido na Croácia, Kelley Polar, de quem foi recentemente editado o segundo álbum “I Need You To Hold On While The Sky Is Falling”. Polar pega em todos estes pressupostos e cria um universo pop muito particular, bebendo em Arthur Russell, um dos pioneiros, muita da inspiração para a sua música. Tal como Russell, também Polar tem formação musical clássica, neste caso o violoncelo, e esse sentido de proporção, de rigor quase geométrico associado à música clássica é transposto para estas canções. Mais do que provocar um frenesim conducente à loucura nas pistas de dança, o que interessa a Polar é a construção de melodias irrepreensíveis. Estas são canções elegantes e pessoais, contidas, mas tendo como base uma utilização ousada dos recursos típicos do Disco, os arranjos de cordas, os instrumentos clássicos (o violoncelo, et pour cause…), as harmonias, todo um sentido teatral e dramático que faz parte integrante do seu imaginário. Tudo isto envolvido por doces nuances electrónicas, breves pinceladas digitais que enchem de cor e vida uma forma de abordar a vida e a música por vezes tingida de um existencialismo negro e sem esperança, altamente cerebralizado. Tal como nos casos dos Chromatics e dos Glass Candy, não é bem ao paraíso que se pretende chegar, mas ao coração da noite, com tudo o que isso implica, para o bem e para o mal. Este segundo álbum é tudo isto, mas numa forma já mais polida, mais sofisticada, mais consciente. Para ir à raiz, recomenda-se o primeiro álbum de Polar, “Love Songs Of The Hanging Gardens”, de 2005, esse sim uma verdadeira caixinha de surpresas, onde se pode assistir, em assombro, ao revelar de um universo inesperado e cheio de tesouros, estranhos e belos, com contraponto inesperado de violoncelo. A música electrónica é uma coisa mecânica e sem alma? Nem por sombras… Recomendo a audição da faixa 3 de “… The Sky Is Falling”, “Entropy Reigns (In The Celestial City)” onde tudo isto se torna carne e vive.

1 comentário:

joaorsilva disse...

O blog está muito bom.

http://trazaspipocas.blogspot.com/

Abraço